terça-feira, 28 de abril de 2015



Acordo com o chão gelado da cozinha no meu rosto.

Minha cabeça lateja. E lateja. E lateja.

O ato de abrir os olhos é um sacrifício. Vamos lá Clara.

A cozinha está vazia. Silenciosa.

Levanto-me com o máximo de esforço que um ser humano consegue fazer em uma situação 
dessas.

A janela mostrava um céu ainda escuro.

Arrasto-me até o banheiro. Eu realmente não deveria ter bebido tanto.

Lavo meu rosto inchado. A água gelada aguça meus sentidos.

Meu deus. Preciso dormir.

O pequeno percurso até meu quarto é tortura.

Mal acredito quando alcanço a cama. Adormeço no instante em que minha cabeça toca o travesseiro.

- Você realmente acha que vai conseguir escapar de mim?

Sei que a voz é de Peter. Não quero abrir os olhos.

- Me deixa dormir em paz.

Ele se senta na beirada da cama. Posso sentir seu cheiro.

- Você quem está imaginado.

- O que?

- Meu cheiro.

Viro meu rosto para o outro lado.

- Clara, por favor, vamos resolver isso logo.

- O que você quer que eu faça?

- Você já sabe o que.

- Não vou fazer isso.

- Clara...

- Dá pra calar a boca! Não vou fazer isso!

Meu sono evapora. Posso sentir minha pulsação no meu ouvido.

- Eu vou sair.

- Isso mesmo!

A mulher de cabelos vermelhos está sentada na outra beirada da cama.

- Qual o problema de vocês dois?

- Qual o seu problema?

A mulher se deita ao meu lado.

- O que você está fazendo? Sai da minha cama!

- Nossa cama, né querida.

- Quem é você afinal de contas?

- Roxy, o prazer é todo meu.

Ela masca um chiclete. Posso sentir o cheiro mentolado de seu hálito.

Levanto-me e corro até o banheiro.

- Você sabe que nunca vai conseguir fugir de nós, certo?

Peter chega à porta do banheiro.

Ele não usa mais um casaco. Está com um suéter marrom.

- Eu sei.

Ele se posiciona no meu lado esquerdo. Sinto sua respiração no meu rosto.

- Como você respira?

- Não sei.

Um sorriso surge em seus lábios. Não consigo evitar sorrir.

- Vamos Clara, vamos resolver isso logo.

- Não escute ele.

Roxy está do meu lado direito. Seu hálito de menta em minha bochecha.

Fui encurralada. Não há para aonde correr.

- Clarinha, você sabe o que realmente quer fazer. Esquece esse idiota.

Minha respiração está acelerada.

- Clara, por favor. Você sabe o que tem de fazer.

Peter está tão perto que seus lábios encostam levemente minha bochecha.

Não consigo formar uma se quer palavra. Sinto vontade de gritar, rir e chorar. Tudo ao mesmo tempo.

Eu estou na situação mais insana possível. Realmente estou no fundo do poço.

- Não sei o que fazer.

- Sabe sim.

Roxy se aproxima. Seus lábios vermelhos mancham meu rosto.

Sinto sua língua em minha bochecha. Tenho um calafrio.

- Você sabe que quer sair, encher a cara. Sabe que é a única forma de melhorar.

- Isso não é verdade. Tudo que precisa fazer é aceitar.

Sinto meus olhos umedecendo. Que droga.

- Vamos lá.

Peter está segurando minha mão. Segurando-me.

- Tudo bem.

- O que?

- Tudo bem, eu faço.

- Fazer o que?

Não o respondo. Ele sabe o que estou pensando.

- Clara, tem certeza?

- Isso! Muito bem Clarinha!

- Clara, acho me...

- Calem a boca os dois.

Antes que pensasse melhor no que estava prestes a fazer já está dentro de um taxi.

O percurso demorou um pouco. Estava em um subúrbio. Silencio e casas caras.

Pedi que o taxista esperasse. Não iria demorar muito.

- Clara, tem certeza?

- Cala sua boca Peter, você quem queria que falasse.

- Não assim.

Roxy está no ultimo degrau da varanda da casa em pretendo entrar.

Toco a campainha. Ele atende.

- Clara? O que você está fazendo aqui?

- Posso entrar?

- Claro, mas eu...

Já estava no meio da sala antes que ele terminasse a frase.

- Mas o que você veio fazer aqui?

- Dizer que você é um hipócrita. Assim como Ana.

- O que?

- Hipócritas, frios, secos. Filhos de uma puta.

- Qual o seu problema?

- Você, todos vocês.

Aponto para uma foto de família.

- Clara, como você está... Diferente.

Ana está na sala com sua pele morena e cabelos escuros.

- Sua piranha. Vocês me deixaram acreditar que foi minha culpa. Eu te odeio.

- Clara o que está acontecendo?

- Para de ser sonsa. Você sabe muito bem do que eu estou falando.

Silencio.

- Vamos lá, falem algo.

Silencio.

- Vocês são realmente toscos, esperava que vocês ao menos se defendessem.

Os dois ficam sem reação. Saio correndo da casa.

O taxia ainda está na porta.

Mal consigo respirar.

Não acredito no que acabei de fazer. Puta merda.

- Muito bem Clarinha.

Roxy está sentada ao meu lado esquerdo.

Olho para o outro lado e vejo Peter.

Ele tem uma mistura de medo e satisfação no seu rosto.

- Muito bem Clara.

Sinto uma onda de calor por meu corpo. Um peso sai dos meus ombros.

Peter sorri e aproxima seu rosto do meu. Ele me beija.

Fico sem reação.

Roxy vira meu rosto para ficar de frente com o seu.

Seus lábios vermelhos tocam os meus.

Sinto minha respiração falhar.

Fecho meus olhos tentando me acalmar. Inspire. Expire.

Quando abro meus olhos os dois se foram. Deixaram seus lugares vazios.

Minha mente está muito mais leve. Não foi minha culpa.

Não é minha culpa.



domingo, 26 de abril de 2015

- Tem como você ir embora. Esse não é o momento ideal.

- Muito pelo contrario. Esse é o momento perfeito.

- Você não vê que ela está fora de se. Não piore a situação!

- Piorar? Eu estou melhorando!

Nesse instante os dois estão a centímetros um do outro.

O desprezo é multou e posso sentir o ar se encher dele.

- Tem como alguém me explicar o que está acontecendo?

Ambos viram em minha direção.

Dois cães brigando por um osso. É isso que sou, um aperitivo para ser mastigado e cuspido.

- Clarinha meu amor, me desculpa por não te explicar. Então, você está em um momento de crise e eu estou aqui para te ajudar!

- Porra nem uma. Você só vai piorar a situação. Não escuta o que ela está falando Clara!

Minha cabeça está rodando.

- Preciso me deitar.

Deito ali mesmo, no chão da cozinha.

O frio no meu rosto é relaxante. Peter e a mulher estão em pé na entrada da cozinha me observando.

Peter se aproxima e se senta do meu lado.

Ele cheira à terra úmida e colônia. O que não faz sentido, já que ele sou eu.

- Clara, eu sei que você se culpa pelo que aconteceu. Mas entenda que isso não é verdade.

- Tudo mentira! Você sabe muito bem que é sua culpa, que você não deveria ter feito o que fez. Agora viva com as consequências.

- Cala a boca!

- Só estou dizendo a verdade...

Peter respira fundo. Seu rosto está vermelho de raiva.

- Não escute o que ela diz.

- Mas ela está certa.

- Viu!

- Eu não deveria ter feito aquilo. Eu deveria ter ido.

- Clara como você poderia saber?

- Eu... Eu de... Eu tinha que saber! Eu sou uma idiota.

Posso sentir as lágrimas salgarem meus lábios.

-Me de uma prova de que você é tão culpada quanto diz.

- Não atendeu as ligações, não foi a todos os encontros, nunca disse que amava. Quer mais que isso?

Meu instinto anda de um lado para o outro. Ela veste uma calça jeans, uma blusa vermelha e saltos pretos.

- Isso não a torna culpada e você sabe disso.

- Como não?

- Ela não precisava ir a todos os encontros. Só o fato de ela ter ido aos que conseguia já é o suficiente. Não atender ligações? Por favor.

- Ela nunca disse que a amava.

- Ela não precisava. Clara, tenho certeza que ela sabia disso!

Levanto minha cabeça do chão gelado. Meus olhos ainda lacrimejam.

Tudo é uma bagunça. Meus pensamentos não fazem sentido.


Meus olhos estão pesados. Durmo ali mesmo. 


quinta-feira, 23 de abril de 2015


O dono do bar me expulsou.

De novo estou vagando. Dessa vez sem ser capaz de dar um passo reto.

- É melhor você voltar para casa.

Apoio-me em um poste. Nada faz sentido.

- Se você sou eu, por que você é um homem?

- Você deveria fazer essa pergunta a você mesma.

O que ele diz faz sentido. O que não deveria acontecer. Ele é um lunático que diz ser eu.

- Clara, vamos para casa?

Levanto-me do poste.

- Não. Você vai saber onde morro. Muito arriscado.

- Diz a garota que estava sozinha em um parque deserto no meio da noite.

As coisas a minha volta voltam ao foco. 

Mexo minha cabeça e tudo volta a rodar.

- Acho que quero ir para casa.

Peter me ajuda a pegar um táxi.

O interior do carro é escuro e abafado.

O taxista fala em uma língua que nunca escutei antes ao telefone.

- Peter, o que está acontecendo?

- Você sabe o que está acontecendo.

- Eu estou bêbada e conversando com um ser imaginário. Não sei mesmo.

O taxista me encara pelo retrovisor. Estou ficando louca.

- Te explico quando chegarmos em casa.

O táxi para algumas ruas antes do meu apartamento. Não dá para correr esse risco.

O caminho até o prédio é silencioso.

O sereno umedece meus cabelos. Faz-me apertar meu casaco.

O prédio é antigo. A tinta da faixada está descascando. As grades enferrujadas com seus resquícios de tinta vermelha.

O saguão estava estranhamente quieto.

Uma nuvem de poeira pairava o ar. Podia sentir o muco escorrendo por minhas narinas.

Eu me sentia dentro de um navio. Balançava de um lado para o outro.

Cambaleio para dentro do elevador e fecho as duas portas.

- Pelo menos você está segura.

Meu coração da um salto.

Eu devo estar tento um surto psicótico.

- Vai embora.

- Eu já disse que não posso.

- Mas como?

- Eu sou você! Meu deus, você está mais bêbada do que você acha.

 - Disso eu sei. Como você pode ser eu?  Você é uma pessoa!

Ele respira fundo. Solta.

- Sou sua consciência.

- Consciência?

- Exato.

- Mas você é uma pessoa!

Ele leva as mãos ao rosto. Encosta na parede do elevador.

- Você vai sair ou vai passar a noite nesse cubículo?

Sua voz está abafada. Demoro alguns segundos para perceber que já estava em meu andar. 

Abro as portas sem muito jeito. Quase caio.

Meu andar parece um cenário de filme de terror.

 Uma leve onda de paranoia me faz estremecer.

Corro até minha porta. Mal consigo encaixar as chaves.

O apartamento está quente.

Papeis e caixas de comida por todos os lados.

Jogo-me no sofá marrom que um dia foi da minha mãe.

- Você se sente culpada.

Levanto minha cabeça. Peter está escorado no batente da cozinha.

- Você se culpa pelo o que aconteceu.

- Isso é meio óbvio.

- Se fosse, eu não estaria aqui.

Obrigo meu corpo a sentar-se. Minha visão está mais estável.

- Não faz sentido.

- Você quem está criando isso.

Aponta para se mesmo.

Seu cabelo cai levemente nos olhos.

Seu tom de pele morena. As bochechas vermelhas do frio.

- Você está me dizendo que eu me sinto tão culpada que dei vida a minha consciência.

Afirma com a cabeça.

Estou enlouquecendo.

- Relaxa. Todo mundo faz isso.

- Todo mundo transforma sua consciência em uma pessoa?

- Todos conversam com sua própria consciência. Todos os dias. Todas as horas. Mas vocês nos 
ignoram na maioria das vezes.

Seus olhos pareciam sentir pena de mim.

Sua voz era reconfortante.

- Eu já falei com você antes?

Ele afirma com a cabeça.

- Por que não me lembro?

- Por que você nunca chegou a esse ponto.

- Que ponto?

Olho para minhas roupas.  Folhas do parque.

Corro até o espelho do banheiro. Lágrimas caem.

Meu cabelo se embola em nó no topo da minha cabeça. Minhas axilas manchadas de suor. Minhas 
olheiras transformaram meu rosto em um outdoor ambulante: “Estou em pedaços!”

- Não precisa chorar...

- Como assim? Olha pra mim!

Preciso beber algo.

- Não.

- Oque?

- Não beba.

- Como você sabe o que estou pensando?

- Eu sou você, lembra?

- Sai da minha frente.

Cambaleio até a cozinha. Uma garrafa de Wisk. Perfeito.

- Precisamos conversar.

- Sobre?

- Você sabe.

Olho para os meus pés.

Sinto um calor em minhas pernas. Estou pronta para fugir.

- Não quero falar sobre isso.

Dou um gole demorado.

- Para de beber.

- Não escute ele.

Quase caio no chão quando uma mulher de longos cabelos vermelhos surge na minha cozinha.

- QUEM É VOCÊ??

- Eu sou você bobinha.

Acho que eu realmente deveria parar de beber.

- Mas... Mas...

- Sou seu instinto.

Olho para Peter. Sua testa está enrugada. Ele não gosta do está acontecendo.